Escuta e a clínica psicanalítica no acompanhamento do autismo
Não há como começar falando das condições do autismo sem resgatar questões históricas.
Um dos primeiros registros feitos sobre essa condição veio do psiquiatra austríaco Leo Kanner. O psiquiatra começou a ter mais atenção nas crianças que apresentavam comportamentos menos comuns do que o esperado para a época.
Foi em 1943 depois dessas observações que surgiu o primeiro termo, chamado de ‘’distúrbio autístico do contato afetivo’’ tudo porque na época o lado social e afetivo era o que mais chamava atenção de Kanner.
As pesquisas em relação ao termo continuaram entre os anos 50 e 60, sempre como algo novo e que despertava diversas dúvidas. A grande primeira descoberta envolve polêmicas.
Pesquisadores da época tinha como hipótese que crianças desenvolviam o distúrbio porque tinha uma relação pouco afetiva com os pais! A mãe ganhava um destaque ainda maior nessa relação, denominadas como ‘’mães geladeiras’’.
Com a evolução dos estudos muitas hipóteses foram surgindo, como transtorno cerebral e uma possível reação a vacinas da época.
Ao falar do histórico do autismo não pode – se deixar de citar um momento marcante, em 2978 Michael Rutter, um psicólogo britânico cita critérios que até hoje são bases dentro do espectro autista.
Essas bases são:
Atraso cognitivos e desvios sociais;
Problemas de comunicação;
Comportamentos pouco comuns (movimentos estereotipados e compulsivos);
Início do quadro anterior aos 30 meses de idade.
Essa definição foi muito importante para que o autismo fosse incorporado pela primeira vez no DSM, no ano de 1980. A condição fazia parte dos transtornos invasivos do desenvolvimento.
Diversas contribuições sobre níveis de autismo, características únicas de cada indivíduo, entre outras coisas foram chegando anos depois, sempre visando a melhor forma de oferecer tratamento e qualidade de vida.
Em 2007 a ONU proclamou o dia mundial da conscientização sobre o autismo, sem dúvidas um marco histórico que tem como principal objetivo desmascarar mitos sobre essa condição, e também informar melhor a população, já que ainda há dúvidas e pouco conhecimento sobre o autismo.
O autismo hoje
Ainda não foi descoberto nenhuma causa específica para o autismo, porém, já se sabe que há algumas anomalias na função cerebral. Mas ainda está em constante avaliação a questão da hereditariedade bem como questões na gravidez como o parto, utilização de substâncias químicas, infecções e outros fatores ambientais.
Hoje também se sabe que nem sempre o autismo se manifesta entre os 18 e 24 meses, por vezes, ele se torna evidente a partir dos 2 anos, ou até mesmo aos 6 anos de idade.
Quanto ao diagnóstico, não há nenhum teste específico para o mesmo, o que acontece é uma avaliação mais completa onde alguns sinais devem estar presentes, como por exemplo:
perda da capacidade de linguagem e / ou social em qualquer idade;
não emitir nenhum som aos 12 meses;
não executar gestos aos 12 meses;
não pronunciar palavras simples aos 16 meses;
não formar frases com duas palavras aos 24 meses.
Importante ressaltar que a presença desses sinais não garante que a criança seja autista, a avaliação vai muito além, e a criança deve sempre ser avaliada por uma equipe multidisciplinar com a presença de neurologistas, pediatras, psiquiatras, psicólogos e fonoaudiólogos.
Os critérios par diagnóstico devem seguir o definido pela Associação Americana de Psiquiatra. E de forma habitual esse diagnóstico acontece antes dos 3 anos, lembrando que quanto mais rápido, maiores chances de intervenção.
Ainda falando sobre intervenção dentro do autismo, o tratamento encontra – se cada vez mais efetivo, graças a questão multidisciplinar, e as pesquisas realizadas na área.
Mesmo em um ritmo diferente, a criança autista pode se desenvolver, crescer, aprender e se relacionar! Mesmo não existindo a cura, o tratamento visa reduzir comportamentos, e oferecer maior autonomia.
Entre as opções de tratamento temos a terapia feita com o psicólogo, que pode auxiliar crianças autistas, e também seus pais durante todo o processo.
E diferente do que muita gente pensa, a abordagem psicanalítica tem uma forte contribuição para a intervenção do espectro autista!
Psicoterapia lúdica psicodinâmica e autismo
A primeira coisa que deve ser ressaltada é que a abordagem psicodinâmica deve ser acompanhada de outras intervenções de caráter multidisciplinar.
Também é importante citar a importância da psicoterapia para uma criança autista. Atualmente diversos estudos citam que ao perceber a sua dificuldade no relacionamento com o outro, pessoas autistas podem desenvolver sentimentos ansiosos e depressivos, dessa forma, a psicoterapia na infância vem como um fator protetor, visando trabalhar de forma precoce todas essas questões.
Durante todo o trabalho entre psicoterapeuta e a criança, o diagnóstico será utilizado como uma forma de orientar ações e intervenções, mas a criança nunca vai se limitar somente ao diagnóstico. Ou seja, não se tem aqui um modelo baseado totalmente nos sintomas, e sim no funcionamento individual de cada indivíduo, e como os mesmos podem ser trabalhados dentro do processo de terapia.
Para que o trabalho possa se iniciar o vínculo com o terapeuta é essencial, a construção dessa relação tem relação total com o sucesso do tratamento. A criança precisa sentir que é ouvida e tem um espaço dentro do contexto, o ambiente precisa se mostra acolhedor e seguro.
E todo o processo de cura analítica clássica também se faz presente por aqui, mas nesse caso como se o terapeuta fosse o tradutor da linguagem do pequeno sujeito que nem sempre consegue se expressar, e como esperado, o inconsciente tem um local importante no meio de tudo isso.
O vínculo se dá com o tempo, como em qualquer procedimento analítico, ainda mais com crianças! Os recursos lúdicos como jogos, desenhos, histórias também podem e devem ser utilizados, o terapeuta só deve estar atento a adaptar tudo isso para o pequeno sujeito, lembrando de suas limitações, ou mesmo de sua necessidade de rituais durante a sessão.
A tarifa por aqui é delicada, afinal, o analista deve reconhecer eventuais falhas que aconteceram desde a infância. Por vezes, os pais dão a ilusão da onipotência, o que gera dificuldades para o processo de diferenciação, separação, e individuação.
Fala – se sobre um trabalho sempre permeado sobre a possibilidade de construção do lugar subjetivo, marcado por um longo processo, nunca linear. O analista precisa trabalhar em si sua transferência em relação a ansiedade e suportar a falta de resposta, é preciso saber buscar essas respostas a partir de outros aspectos.
Não há uma direção de tratamento, há sempre colocações universais quanto ao contexto, mas não um manual! A singularidade de cada caso é o grande diferencial da terapia psicanalítica e dessa escuta que o analista vai proporcionar.
Fazer um manual a ser utilizado em cada caso vai reforçar ainda mais o biológico, e não faz parte do trabalho proposto pela teoria. O analista vai apostar na possibilidade da construção de alteridade.
Diante de diversas experiências e também de casos relatados devemos reforçar a posição do analista não é de compreender, nem de demandar algo do paciente, desejando que a criança faça isso ou aquilo.
O analista vai ignorar tudo aquilo que sabe, e vai estar aberto a procurar particularidades, e entender porque de suas manifestações. Tudo isso pode ser resumido por um trabalho que vai ser como tentativa a saída do lugar de objeto do gozo do outro, para se constituir como sujeito.
Ou seja, é necessário acolher a criança sem gozar ás suas custas, sem a colocar como objeto do seu gozo, assim, ela não vai sentir – se mais invadida e algum trabalho pode ser realizado.
E assim como não pode – se esperar resposta da criança ou mesmo vínculo, não pode – se esperar melhora! Tudo isso gera angústia no analista, o que é natural, por isso a supervisão e o processo de análise nesses casos é essencial.
Quando o analista projeta qualquer esperança de melhora, já vai estar interferindo nisso, podendo fazer com que o paciente vivencie recusa e invasão.
De forma resumida, na clínica com crianças autistas o trabalho se apresenta de forma delicada, precisando o analista ter o dobro de atenção as questões de transferência, e conseguindo lidar com a frustração do não contato, não melhora, ou mesmo pela possibilidade de ser ignorado pelo paciente.
O trabalho tem como objetivo produzir um sujeito dono de sua própria história dentro da singularidade, e por isso o comportamento ou o diagnóstico não é fator prioritário por aqui.
E diferente da neurose, por exemplo, onde temos um trabalho de confronto, por aqui temos um trabalho muito mais de acolhimento.
A clínica psicanalítica com pais de autistas
Quando fala – se sobre o atendimento de crianças, estamos sempre implicando pais nesse processo. Não há atendimento infantil sem a presença dos pais.
Tudo porque os pais tem um papel essencial no meio do sintoma, seja lá qual o for, além disso constituem o principal meio que a criança está inserida. Por vezes, a criança não consegue melhorar o sintoma pela falta de trabalho com os pais, por exemplo.
No caso das crianças autistas esse processo não deixa de ser essencial. O trabalho consiste principalmente em ouvir e acolher.
Desde a gravidez os pais projetam como serão seus filhos, a cor do olho, os aspectos da personalidade, por vezes, até a profissão que eles devem seguir! Essa projeção é natural, e faz parte do processo de se tornar mãe ou pai.
Quando a criança nasce ela sempre quebra essa projeção dos pais, afinal, ela nunca vai corresponder 100% ás expectativas, e os pais saudáveis conseguem passar por cima dessa frustração.
Mas quando a criança apresenta qualquer transtorno, como o caso do autismo, não é fácil se libertar dessa frustração. Temos que pensar que são pais que possivelmente procuraram diversas causas, diversos médicos, e que podem ter passado pelo processo de negação antes de aceitar o diagnóstico final.
O espaço da psicoterapia é essencial para que esses pais possam falar sobre sentimentos de culpa, de medo, e até mesmo sentimentos destrutivos que possam estar de forma inconsciente.
Trabalhar com sonhos é sempre uma boa forma de entender o inconsciente, já que muitas vezes esses pais não vão conseguir verbalizar tudo que estão sentindo, por vergonha, medo ou porque realmente não tomaram consciência.
Ao mesmo tempo que os pais amam o objeto (filho), eles querem o destruir, e sentem imensa culpa por isso. Se a gravidez não foi planejada, por exemplo, ou teve algum aspecto não saudável, esse sentimento pode vir ainda mais intenso.
Por isso, de primeiro momento o ideal é ouvir e acolher, esse é o principal ponto de trabalho! Tentar orientar em algumas questões pode fazer parte, bem como realizar a anamnese completa sobre o processo de como os pais se conheceram, processo de gravidez, primeiros meses de vida da criança, e afins.
O ideal é que além de acompanhar o processo dos filhos com sessões mensais, os pais possam realizar um processo a parte com outro terapeuta. Como mencionado, o autismo é uma condição sem cura, e cada fase traz sentimentos diferentes para os progenitores.
Considerações finais
Diversas pesquisas continuam sendo realizadas na clínica sobre o autismo, elas são importantes, mas nunca vão orientar totalmente o trabalho do psicoterapeuta que está mais interessado nos processos individuais.
A psicanálise ainda é criticada enquanto intervenção para o autismo, justamente por não estar interessada em modificar comportamentos, mas entender porque eles acontecem e qual sua importância dentro do sintoma.
Mas para conquistar ainda mais esse lugar e evoluir enquanto tratamento, as pesquisas dentro da área devem ser realizadas e publicadas, nunca como manual para os colegas, mas como forma de mostrar a eficácia que esse tratamento também proporciona na clínica de autismo.
Artigo escrito à partir da prática clínica, trabalho na A+São Roque e Associaçao Ampliando Vidas.